Qual o problema de pés de barro se a gente vive na lama?

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fernaocapelo Havia dois tipos de adolescentes não-populares nos anos 80. Um tipo tinha o pôster do Che, o outro o do Lennon com a letra de Imagine. Eu era o segundo tipo. Era um sonhador, imaginava mil situações, jogava um xadrez mental onde só ganhava em minha própria cabeça, afinal só nela sabia o movimento do adversário.

Nessas idas e vindas descobri Richard Bach. Primeiro no colégio, onde além da chatíssima literatura brasileira repleta de Machados, Joaquins e Josés nos deram Fernão Capelo Gaivota. Minha sorte é que nessa época minha mãe era sócia do Círculo do Livro, e eu cresci sabendo que livro brasileiro não eram só aqueles porres de gente falando difícil e mocinhas morrendo de tuberculose. Havia Drummond, Fernando Sabino, Veríssimo, Paulo Mendes Campos, Rubem Braga, Carlos Eduardo Novaes. Talvez por isso eu tenha sobrevivido ao trauma planejado pela Conspiração Anti-Literatura, e apesar de tudo gostado de ler.

Tanto que por conta própria achei outros livros de Bach. O primeiro foi Biplano, o segundo Ilusões. Mesmo não sendo místico, eu apreciava uma boa história. A junção tecnologia/magia de Richard Back era por si só mágica para aquele garoto.

Naquela fase em que temos certeza absoluta de que nenhuma mulher do planeta vai querer nada com a gente, quando estamos no olho do furacão da Zona da Amizade, descobri o Ponte Para o Sempre, onde Bach conta sua busca de uma Alma Gêmea, como foi complicado, como perdeu a esperança várias vezes. Foi certeiro. Parei de procurar e logo depois arrumei minha primeira e mais memorável namorada, no total entre idas e vindas foram anos.

A influência não parou nisso. Durante todo o livro ele conta detalhes de sua mente de escritor, como conseguiu vender seu primeiro trabalho, como lidou com a rejeição, como perseguir um sonho. Internamente era o meu sonho. Eu gostava de escrever. Muito. Ainda tenho algum material daquela época, mas não é algo que pretenda publicar jamais.

Continuei escrevendo, os textos na gaveta e o Cardoso Escritor no armário.Até que um belo dia essa tal de Internet apareceu, na forma dos BBS e passei a escrever mais ainda. Soltei uma mensagem inconsequente dizendo que queria escrever um livro. Um leitor do BBS respondeu dizendo que tinha um amigo que era editor e sempre procurava novos autores. Peguei o telefone, marquei uma visita. Saí de lá com um rascunho de sumário, voltei alguns dias depois com o primeiro capítulo e levei bronca, devia ter trazido mais, se aquela era a qualidade do material.

Daí foram 11 livros, só parei por não ser ONG, se não me pagam não escrevo, exceto no Twitter.

_44419698_dead_seagull Richard Bach estava lá, quieto, mas com o começo da Internet achei que estivesse acessível. Fui ver e estava. Só que também descobri alguns pecados. No Ponte para o Sempre inteiro ele só menciona sua ex-esposa uma vez. Em NENHUM de seus livros ele menciona que teve seis filhos com ela, e embora pagasse pensão, nunca fez parte da vida deles.

Meu herói tinha pés de barro e ficha suja.

Fernão Capelo estava morto. A sujeira da mentira o sufocara como uma mancha de óleo, que nem todos os Bonos do Mundo poderiam limpar.

Para adicionar insulto a injúria, toda aquela história de alma gêmea era balela. Richard conhecera Leslie Parrish, sua linda atriz de Hollywood com cérebro de Einstein, viveram um lindo e conturbado caso de amor, passaram por vales e montanhas, enfrentaram dragões juntos e no final seu Amor Eterno de Muitas Vidas triunfou.

No fnal do livro sim, na vida real em 1999 eles se separaram de vez.

Como assim,Bial?

Abandonei Richard Bach de vez. Esta semana é a primeira vez em 10 anos que abro um de seus livros.

Descobri que está tudo ali. Toda a inspiração que moldou mesmo a contra-gosto de meu racional minha carreira, todas as dúvidas que tive, ele ainda continua passando por elas. E mais: Depois que fui atropelado pelo Grande RoloCompressor da Experiência (outra expressão de Bach) eu vi que antes o julgava baseado em padrões inatingíveis. Padrões teóricos que nem eu mesmo, quando posto a prova seria capaz de atingir.

Eu descobri da pior única maneira que o Bem nem sempre Vence o Mal e Espanta o Temporal. Que a mocinha nem sempre fica realmente grata por gestos ousados de paixão, que os Justos nem sempre se unem por uma causa em comum, e talvez a Maior Lição de Todas: Nem sempre somos o Mocinho.

Seja sincero: pense em todas as situações que passou. Pode dizer realmente que era a parte Boa de todas elas? Eu não posso.

Uma vez eu disse com sinceridade “sempre cumpro minhas promessas”, e com sinceridade quebrei essa mesma promessa, tempos depois. Triste? Com certeza, mas tive meus motivos. Só que como justificar isso a um leitor de 14 anos que realmente acredita no que escrevo?

Sei que hoje estou relendo Bach com outros olhos. Estou vendo um sujeito que cometeu vários erros, pagou por ele, mergulhou de cabeça, machucou-se várias vezes mas seguiu adiante, pois são as regras do jogo. Não vejo mais um herói arquetípico, indo a luta com a certeza da vitória. Vejo um homem com todos os defeitos, limitações e esparanças de todos os outros.

Tantos defeitos deveriam me afastar, mas na verdade ocorre o oposto. Mais do que nunca vejo um sujeito que faz duas coisas que gosta –voar e escrever- perseguindo seus sonhos e tentando ser o melhor que pode ser, mesmo quando isso não é o bastante. Já dizia a música: “Somos quem podemos ser”.

Posso me identificar com isso.

PS: sim, você leu corretamente nas entrelinhas: vou voltar a escrever, e não será livro técnico!



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