Ficção? Por que não?

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Como todo nerd eu tinha uma produção de conteúdo bem razoável. Acabei me especializando em não-ficção e textos técnicos. Meu primeiro texto publicado, aos 13 ou 14 anos foi na revista MicroSistemas, e a grande ironia é que embora eu tenha me especializado em textos técnicos e não-ficcionais, a primeira vez que vi meu nome impresso foi em um conto de ficção científica publicado em uma revista de informática, que não costumava publicar aquele tipo de texto.

Devo ter em algummmmmm lugar uma cópia da revista, ainda procurarei, estou curioso para reler o texto, do qual não lembro absolutamente nada.

Depois disso continuei escrevendo ficção por um tempo, mas a falta de compromisso e a ausência de lugares para publicar o material me desestimularam. Eu já havia sentido o gosto da tinta, virar autor de gaveta não me interessava.

Mesmo assim quando tinha tempo dava minhas castigadas nas pretinhas e acabava escrevendo alguma coisa.

Agora achei um velho DVD com backups de coisas escritas ainda nos anos 90. Vou postar algumas aqui, atualizar outras e quem sabe retomar o hobby. Sim. hobby. hoje já tenho a tranquilidade de encarar escrever ficção como hobby. Não encano mais com a afirmação de só quem ganha dinheiro com literatura no Brasil é Paulo Coelho e Jorge Amado, pois não é (no momento) meu objetivo, não estou planejando destronar Paulo Coelho. Só quero variar nos temas e estilos, pra não ficar preso a uma fórmula.

Por isso vou começar postando aqui meus velhos textos, com um mínimo de correções. São textos escritos em alguns casos quase 20 anos atrás, então quem for xingar muito no Twitter, lamento informar mas o autor que poderia ser atingido pelas ofensas não existe desde o tempo em que você usava fraldas.

O primeiro texto foi publicado originalmente no blog de ficção científica de minha querida amiga Carol. É um micro-conto de ficção científica escrito em 1993:

 

 

atorre

O Último

A tela se ilumina; uma linha fina separa os dois hemisférios da tela. Um ruído vagamente marinho acompanha a imagem que se forma. Um rosto que não ‚ humano aparece, encarando o Homem.

_às suas ordens-disse a Máquina.

O Homem se espreguiça, sentindo uma leve brisa que entra pela janela. Sem tirar os olhos da tela, o Homem Fala:

_Você pode me ajudar?

_Depende.

A Máquina sabe lidar com perguntas ambíguas.

_Por favor -disse o Homem- eu preciso saber. Durante três gerações minha família esteve morando neste abrigo. Meu avô avisou meu pai que me avisou sobre o perigo por detrás das paredes; ele falou do Grande Nada, contou da Morte Invisível, que mata sem você sentir. Mas agora, quando a armação de concreto caiu e desobstruiu a janela, eu pensei que iria morrer, e não morri.

Enquanto o Homem dava uma pausa para respirar, a Máquina analisava a informação que havia recebido, comparava com ordens programadas em seu cérebro de cristal antes da guerra, e tomava decisões.

_Eu acho -disse o Homem- que a Morte Silenciosa Só vai me atingir se eu for l  fora. O que você acha?

Uma pausa invulgar de quase um segundo demonstrou o quanto a máquina demorou a tomar uma decisão:

_Você ‚ o último Homem. Todos já se foram. Tudo que foi dito por seu pai ‚ verdade. Não há  nada lá  além da Morte Silenciosa.

_Então o que eu vejo?

_Você vê o que eu projeto. Aquilo é uma tela. Os Antigos prepararam para mostrar como era o mundo antes do Fim.

Quase desesperado, o Homem suplicou:

_Mas e o vento, e os cheiros, ruídos? Eu ouço sons como os discos de pássaros. Eu vi nos vídeos. Eu sei que são pássaros.

_São discos. Eu usei robôs de manutenção para instalar ventiladores. Todas as essências aromáticas são trazidas do armazém químico. Não há nada lá, último Homem. Esqueça e aproveite sua vida.

Depois de meses nutrindo coragem e esperança, ele não podia aceitar aquilo. Mas a Máquina era definitiva:

_Mesmo que houvesse algo, você não poderia chegar até lá. Não há  portas, o abrigo é fechado. Esta torre tem mais de cinquenta metros. Desista, por favor. Tente ser feliz no mundo que você sempre conheceu!

Ao mesmo tempo em que gritava, tentando negar a verdade da Máquina, o Homem atirava a tela na parede. Quando a última fagulha se apagou, ele viu que estava só. A máquina que havia sido sua única companhia nos últimos anos estava morta.

Mas havia algo que podia ser feito. Enquanto se comprimia contra a parede oposta… mirando a janela, ele pensou na Máquina. Ela nunca havia mentido. Ela mentiu sempre. Só havia um jeito de saber. Tomando impulso, o Homem se lançou no vazio.

Seus últimos pensamentos foram sobre o gosto da terra misturada com sangue, o cheiro da grama que ele acariciava com suas últimas forças, e sobre o Mundo, que havia sobrevivido ao Homem. Como poucos, ele morreu com um sorriso nos lábios.



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